Até esta quinta-feira (31), o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) vai em missão ao Território Quilombola de Alcântara, no Maranhão. A visita in loco ocorre no âmbito do Grupo de Trabalho (GT) “Direitos dos Povos e Comunidades Quilombolas”, instituído pelo colegiado em março deste ano, com a finalidade de verificar as situações de violações de direitos humanos em territórios quilombolas e propor soluções às questões identificadas.
De acordo com o conselheiro Paulo Maldos, coordenador do GT, o território de Alcântara foi eleito pelo grupo como um dos que receberia a missão por ser alvo, há mais de três décadas, de deslocamentos e graves violações de direitos humanos promovidas pelo próprio Estado. “É um caso emblemático de tensionamento com o Estado brasileiro, por conta da implantação de um projeto de grande impacto, que acreditamos ser importante conhecer melhor para interferir positivamente na salvaguarda dos direitos humanos das comunidades quilombolas daquela região”, afirma.
Ao todo, o GT fará visitas in loco (missões) a três territórios quilombolas. Além de Alcântara, em julho foi visitado o Território Quilombola de Brejo dos Crioulos, no norte de Minas gerais, e em setembro a comitiva irá o Território Quilombola de Maicá, na região de Santarém, no Pará. Ao final das missões, o grupo irá elaborar um relatório final com o diagnóstico da situação das comunidades quilombolas, com recomendações e propostas de ações para prevenção, defesa e reparação desses direitos violados.
A missão do CNDH em Alcântara inclui reunião com lideranças quilombolas e organizações que atuam na comunidade, além de visita à agrovila Maruda e aos quilombos de Mamona, Baracatatiua, Canelatiua, Santa Maria, Brito, Samucangaua, Iririzal e Ladeira. Também será realizada uma Audiência Pública para escuta dos quilombolas na comunidade quilombola de Mamona, com a presença de autoridades locais, estaduais e federais com responsabilidade de atuação sobre as questões que atingem a região.
Tensão no Território – A tensão na região de Alcântara, onde existem mais de 150 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, começou no início da década de 1980, quando foram cedidas as primeiras terras para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), base de lançamento de foguetes da Aeronáutica.
De acordo com relatório da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado do Maranhão (FETAEMA), nos primeiros anos de implantação da base aconteceram muitos protestos e denúncias por conta do descumprimento, pela Aeronáutica, de acordo celebrado em 1983 com os quilombolas, que incluía indenizações e reparo de danos sociais, culturais, políticos e econômicos provocados pela implantação da base.
“O que tinha sido acordado para amenizar o impacto negativo da transferência não foi feito. E as ações que vieram depois sempre foram pensadas de cima para baixo, não foram pensadas com a comunidade. E isso sempre foi um desastre”, declara Sérvulo Borges, representante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) na região.
Segundo Sérvulo, foram deslocadas, entre 1986 e 1989, 312 famílias de 32 comunidades para agrovilas em situações que dificultaram a sua sobrevivência. Além da terra de má qualidade, Borges destaca que os quilombolas ficaram sem local para pesca, pois os rios e à praia ficaram distantes, e o acesso aos recursos naturais, que garantiam o extrativismo, passou a ser limitado ou mesmo proibido pelo centro de lançamento.
“O uso das terras era comum, coletivo, e as terras eram férteis, eram boas, ficavam próximas ao mar. Eles modificaram a forma de uso da terra, porque as pessoas saíram desse uso comum e receberam módulos de terra que variam entre 14 e 17 hectares. As famílias estavam sendo desorganizadas socialmente: a cultura, o modo de produzir, e é aí que entra a violação de direitos. Porque mudar a forma de produzir, através da diminuição do espaço físico, traria sim prejuízo, porque as práticas de produção intercalavam a pesca, a produção nas roças e o extrativismo. Elas continuaram sendo as mesmas e isso trouxe um problema seríssimo”, completa Borges.
Em maio deste ano, o Governo brasileiro sinalizou intenção na retomada do plano de ampliação da base, com possibilidade de utilização de terras quilombolas e deslocamentos compulsórios. Diante disso, as comunidades quilombolas junto com movimentos sociais e entidades sindicais da região realizaram, no dia 28 de julho, uma mobilização que culminou no bloqueio da entrada do Centro de Lançamento por cerca de 6 horas.
“Não tem condições de negociar um projeto dessa magnitude, com tudo isso que é pretendido, sem que haja a participação direta e efetiva de quem vai ser atingido diretamente. Quem foi diretamente atingido há trinta e tantos anos? O povo de Alcântara, que é o verdadeiro dono do espaço, o verdadeiro dono da terra e que preservou tudo isso por muitos e muitos anos e tem essa terra por direito, direito hoje constituído”, afirma Sérvulo Borges.
Ele acrescenta que o movimento quilombola de Alcântara está pronto para o diálogo, e tem propostas. “Nós, enquanto sociedade civil, estamos fazendo a nossa parte. Estamos lutando pelo nosso direito, porque nós maranhenses e nós brasileiros temos o direito de opinar sobre esse projeto, que tem que ter a participação da comunidade. Nós não vamos admitir nós não vamos aceitar, nós vamos falar para o país e para o mundo que a gente não aceita que o país nos trate dessa forma”, completa Borges.