Organizações sugerem que convenção peça mudança de meta
Uma coalizão de mais de 1,3 mil organizações ambientalistas entregou, nesta quinta-feira (28), à Organização das Nações Unidades (ONU) uma carta pedindo que o governo brasileiro seja responsabilizado pelo retrocesso na meta nacional para o Acordo de Paris. Na carta, endereçada à secretária-executiva da Convenção do Clima da ONU, Patricia Espinosa, a rede Climate Action Network pede que a convenção destaque publicamente os pontos de retrocesso na chamada NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) submetida pelo Brasil em 09 de dezembro de 2020.
Também alerta que a acolhida da NDC brasileira pela convenção mandaria um sinal negativo para outros países. Por fim, sugere à ONU que apele ao Brasil para apresentar uma NDC aprimorada ainda neste ano, “que cumpra os requerimentos do Acordo de Paris”.
Esta é a primeira vez que a CAN escreve a Espinosa recomendando que um país individual seja admoestado publicamente pela convenção por conta de sua NDC. O movimento tem tudo para gerar desconforto na convenção, já que não existe no Acordo de Paris previsão legal para apontar o dedo para esta ou aquela nação.
O que existe é um relatório periódico no qual as metas agregadas são avaliadas para ver se a soma das NDCs é ou não é suficiente para cumprir os objetivos do acordo do clima — de limitar o aquecimento da Terra a menos de 2oC e tentar limitá-lo a 1,5oC.
Esse relatório será lançado em fevereiro, e os ambientalistas querem que ele aponte os retrocessos da NDC do Brasil, de forma a desestimular outros países de descumprir princípios fundamentais do acordo do clima.
O Brasil tem feito por merecer. Em 08 de dezembro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou uma nova NDC brasileira que substitui a NDC apresentada em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff. Na ocasião, o país havia prometido cortar 37% de suas emissões até 2025 em relação aos níveis de 2005, e havia apresentado também uma meta indicativa de 43% de redução de emissões em 2030.
No ano passado, o país simplesmente confirmou a meta indicativa para 2030. No entanto, como a conta das emissões de 2005 foi refinada de lá para cá, a nova NDC significa, na prática, que o país chegará a 2030 emitindo de 200 milhões a 400 milhões de toneladas de CO2 a mais do que havia se comprometido em 2015.
A carta elenca quatro pontos problemáticos na nova meta brasileira: permitir emissões mais altas em 2025 e 2030; falta de clareza sobre sua condicionalidade ou não a aporte financeiro externo; menos detalhe sobre as contribuições setoriais para a redução de emissões; e ausência completa de menções a adaptação.
“O exemplo do Brasil, que apresentou uma NDC em muitos aspectos mais fraca e menos ambiciosa que a anterior, não deveria ser aceito sob a UNFCCC e seu Acordo de Paris, menos ainda acolhido. Se tal NDC for acolhida, um sinal preocupante será dado a outros governos e atores sobre o nível de ambição que se espera deles”, afirma a carta da CAN.
“O Brasil de Jair Bolsonaro é um caso até agora único no mundo de NDC que retrocede na ambição em vez de avançar”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “O Acordo de Paris diz muito claramente que as NDCs só podem ser mais ambiciosas que as anteriores. Essa, inclusive, é uma regra que o próprio Brasil ajudou a negociar. O governo atual, que já disse ter orgulho de ser pária, está dando as costas não só para o planeta, mas também para a nossa tradição de política externa.”
Leia a seguir a íntegra da carta da CAN.
25 de janeiro de 2021
Prezada Secretária-Executiva,
Em nome da Climate Action Network e de suas mais de 1.300 organizações integrantes em mais de 130 países, permita-me expressar nossos sinceros votos de que 2021 possa ser um ano pacífico e saudável para a sra. e todo o secretariado da UNFCCC, no âmbito da qual nós, enquanto comunidade global, temos a capacidade de avançar de maneira significativa rumo a um futuro justo e mais seguro.
Para produzir um futuro seguro para todos, a ação climática urgente é essencial e obrigatória. Nesse aspecto, a CAN gostaria de manifestar sua mais profunda preocupação com a NDC atualizada submetida pelo Brasil em 9 de dezembro de 2020. Como sexto maior emissor mundial de gases de efeito estufa, o Brasil tem um papel importante na luta contra a mudança climática. Sendo um líder regional e uma importante economia da América Latina, tem os recursos necessários para acelerar a ação climática. E vez disso, o país escolheu submeter uma NDC que falha em aumentar sua ambição e que, de fato, representa uma regressão em relação à NDC anterior, nos seguintes aspectos:
- Permite emissões absolutas muito mais altas em 2025 e em 2030 que a NDC anterior, devido aos níveis de emissões revisados no inventário da 3a Comunicação Nacional, indicada como linha de base provável na NDC atual. A NDC anterior explicava que as reduções de emissão em termos absolutos seguiam a linha de base de 2,1 GtCO2e derivada do segundo inventário. A NDC recentemente submetida usa níveis de emissão relatados na Terceira Comunicação Nacional, que em 2005 eram de 2,84 GtCO2e. O aumento de 740 MtCO2e na linha de base permite um aumento de emissões de quase 40% acima da meta anterior para 2025 e da meta indicativa para 2030. A nova meta para 2025 com uma redução de 37% é 1,76 GtCO2e, contra a meta anterior de 1,3 GtCO2e, enquanto a nova meta para 2030 com redução de 43% se traduz em uma meta absoluta de 1,6 GtCO2e, 400 MtCO2e maior que a meta indicativa da NDC anterior (1,2 GtCO2e). Considerando todo o período de 2021 a 2030, isso poderia significar vários bilhões de toneladas de CO2e em emissões e uma trajetória de emissões associada a altos índices de desmatamento. A NDC do Brasil levanta a possibilidade de usar os números de um inventário mais recente como linha de base. O governo adiou a submissão da sua 4a Comunicação Nacional, que reportou para 2005 emissões de 2,5 GtCO2e, até depois da submissão de sua NDC mais recente, embora o inventário tenha sido finalizado vários meses atrás. Usar esses dados ainda resultaria numa meta que permite um aumento de 20% nas emissões em relação à NDC anterior.
- Falta de clareza sobre a condicionalidade da NDC atual. De maneira acertada, a NDC anterior do Brasil dizia claramente que “a implementação da iNDC do Brasil não é condicionada a suporte internacional”. Tal clareza não existe na NDC recém-submetida, e alguns de seus elementos sugerem até mesmo que não apenas a data do atingimento da neutralidade de carbono, mas as próprias metas de 2030, estão condicionadas a apoio. Por exemplo, o parágrafo final afirma que “O Brasil precisará receber ao menos US$10 bilhões ao ano, a partir de 2021, para fazer frente aos numerosos desafios que enfrenta, inclusive a conservação da vegetação nativa nos seus vários biomas.” Isso parece dizer que o Brasil não conseguirá controlar suas altas e crescentes taxas de desmatamento caso não receba os fundos mencionados. Uma vez que controlar o desmatamento é essencial para o atingimento das metas da sua NDC, isso aparentemente poria toda a NDC em risco caso os fundos não sejam entregues. Da mesma forma, o parágrafo anterior afirma que “a eventual não conclusão da regulamentação do Artigo 6 afetaria de forma muito negativa toda a arquitetura do Acordo de Paris e a implementação de seus objetivos”. Será que isso está a indicar que se as demandas do Brasil no Artigo 6 não forem atendidas e, portanto, a negociação do artigo 6 não for concluída, a implementação da NDC do Brasil, enquanto elemento da arquitetura de Paris, estará sob risco? A falta de clareza criada por essa NDC é um retrocesso em relação à clareza da incondicionalidade da NDC anterior.
- Menos detalhe sobre as contribuições setoriais para o atingimento das metas na NDC, bem como ausência de elementos sobre adaptação. A NDC anterior continha informações sobre políticas e metas setoriais que ajudavam a entender e davam confiança em relação aos planos e às intenções do governo de implementar a NDC. Por exemplo, ela dizia que o Brasil tinha a intenção de zerar o desmatamento ilegal na Amazônia em 2030 e compensar as emissões do desmatamento legal, portanto, atingindo emissão líquida zero por desmatamento até 2030. A eliminação dessa informação sobre políticas e medidas para atingir as metas na NDC é um retrocesso em relação à NDC anterior. No contexto dos aumentos recentes nas taxas de desmatamento no Brasil, ajudados e potencializados por declarações, ações e políticas da atual administração, isso levanta questões sobre a intenção do país de atingir as metas da NDC, por mais fracas que elas tenham se tornado, e, portanto, sobre sua adequação ao artigo 4.2 do Acordo de Paris.
- Nenhuma referência a políticas, medidas e ações de adaptação. A primeira NDC do Brasil declarava que o país estava “trabalhando no desenho de novas políticas públicas, por meio do seu Plano Nacional de Adaptação (PNA), em fase final de elaboração”. O Plano Nacional de Adaptação foi aprovado em 2016, após um amplo processo de consulta pública. A nova submissão da NDC não tem nenhuma referência a qualquer compromisso ou meta associada à adaptação.
Além desses pontos, a falta de ambição das metas propostas pelo Brasil não é o único problema na NDC atualizada: o processo para produzir a “atualização da primeira NDC” ocorreu sem nenhuma consulta, transparência ou participação. A sociedade civil, a academia e outros atores não foram, de nenhuma forma, envolvidos na sua preparação, apesar de a nova submissão ressaltar que “interações institucionais entre o governo e a sociedade civil se dão através do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas”. Não houve tal interação nesse processo.
À medida que a crise do clima se agrava e mais pessoas são afetadas pelos impactos devastadores da mudança climática, é imperativo que os países ampliem significativamente as metas e as ações de suas NDCs. Retrocessos não devem ser tolerados em nenhuma hipótese.
Os parágrafos 4.3 e 4.11 do Artigo 3 do Acordo de Paris expressam o princípio da progressão, e qualquer regressão ou redução da ambição das NDCs atualizadas ou sucessivas é uma violação do Acordo de Paris. O Brasil submeteu sua NDC de acordo com o Parágrafo 23, uma vez que sua NDC anterior tinha um prazo até 2025. Outros países que submeteram NDCs com mudança de período, incluindo ir de 2025 a 2030, o fizeram como Segunda NDC. No entanto, o Brasil pediu que sua NDC fosse considerada uma Primeira NDC atualizada, aparentemente numa tentativa de evitar enquadrá-la como “NDC sucessiva” para fins do parágrafo 4.3.
Esse subterfúgio legal não deveria ser permitido, e a NDC deveria ser reclassificada como Segunda NDC do Brasil. Independentemente da classificação, porém, o princípio da progressão se aplica a todas as NDCs novas ou atualizadas, e retrocessos nisso são uma violação do Acordo de Paris.
Nesse sentido, nós acreditamos que a UNFCCC tenha um papel fundamental a desempenhar, como guardiã que assegura – por meio dos Climate Dialogues, do relatório-síntese e de outras ações – que o mecanismo de torniquete, parte essencial do Acordo de Paris, seja funcional.
O exemplo do Brasil, que apresentou uma NDC em muitos aspectos mais fraca e menos ambiciosa que a anterior, não deveria ser aceito sob a UNFCCC e seu Acordo de Paris, menos ainda acolhido. Se tal NDC for acolhida, um sinal preocupante será dado a outros governos e atores sobre o nível de ambição que se espera deles.
Para que o Brasil seja responsabilizado por suas ações, nós pedimos à UNFCCC que mencione explicitamente os elementos da NDC que são deficientes e regressivos no relatório-síntese das NDCs, aguardado para fevereiro deste ano, e use a oportunidade para instar o Brasil a apresentar, antes da COP26, uma NDC aprimorada que cumpra os requerimentos do Acordo de Paris.
Cordialmente,
Tasneem Essop
Executive Director
Climate Action Network International