
País deixou de ser “destino dos sonhos” para brasileiros?
DAVI CARLOS ACÁCIO
“Chica da Silva” e “bruaca” são alguns dos termos pejorativos que uma arquiteta que pediu para não ser identificada ouviu quando trabalhava em uma empresa em Portugal. “Praticamente todos os dias eu ouvia um comentário machista”, relembra.
Recentemente, um caso de xenofobia ganhou repercussão nas redes sociais, quando em um aeroporto em Portugal uma cidadã nativa chamou uma brasileira de “porca” e disse que a mulher deveria voltar para o seu país. Por conta do episódio, o ministro da Justiça Flávio Dino repudiou publicamente o ataque sofrido pela compatriota.
O deputado Túlio Gadêlha (REDE – PE), relator da Comissão sobre Migrações Internacionais e Refugiados da Câmara, solicitou ao Itamaraty que cobrasse explicações da embaixada portuguesa.
Os eventos, infelizmente, não são casos isolados em um país que entre 2015 e 2021 recebeu mais de 310 mil imigrantes, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) — unidade do governo português responsável pelo controle de imigração. Com o aumento de estrangeiros residentes em Portugal, o número de denúncias recebidas pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), órgão ligado ao Governo de Portugal, também cresceu no referido período — apenas houve regressão nas queixas, assim como no percentual da chegada de imigrantes, de 2020 para 2021, quando o mundo vivia um contexto de pandemia que, conforme registrado pela SEF no Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo de 2021, “provocou uma desaceleração no aumento da população estrangeira residente”.
Ao todo, de acordo com dados da SEF de 2021, a população estrangeira residente em Portugal é de quase 700 mil habitantes. Desses, cerca de 29% são brasileiros. “Os brasileiros que eu conheço aqui já tiveram situações de xenofobia”, reforça a arquiteta sobre seu ciclo de convívio.
“Em algumas situações, a gente também não se sente atendido, então não se sente muito motivado a fazer esse tipo de relato, até porque parece que não vai dar em nada”, justifica.
Para tentar evitar o ódio gratuito, há quem adote estratégias como se comunicar em inglês em Portugal: “Tenho amigas que preferem fazer isso para não serem identificadas como brasileiras”, conta Luiza Cotta Pimenta, que saiu de Juiz de Fora, em Minas Gerais, e está em Portugal temporariamente, por uma oportunidade de passar um período do doutorado fazendo pesquisa fora do país — etapa conhecida como doutorado sanduíche.
Crise política e econômica – Portugal atravessa uma crise habitacional sem precedentes que atinge tanto portugueses quanto imigrantes. Morar perto do trabalho no contexto atual é “um luxo”, afirma Hélio da Silva, brasileiro formado em gastronomia e residente em Portugal desde 2001.
“Já morei em vários lugares. Antes, você escolhia as casas de acordo com a distância do trabalho. Hoje, moro em uma casa própria perto de uma estação de metrô. Levo cerca de 25 minutos até meu trabalho”.
Não bastasse o momento relacionado ao mercado imobiliário, na última terça-feira, dia 7 de novembro, o primeiro-ministro de Portugal, António Costa, renunciou ao cargo após ser alvo de investigações por corrupção.
Com a maioria da população portuguesa “ganhando menos de 1.000 euros por mês”, a tendência é que um mal-estar se instaure e, mediante as crises, “a população imigrante sempre passe a ser alvo nessa panela de pressão”, explica Érica Sarmiento, professora associada de história da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenadora do Laboratório de Estudos de Imigração (LABIMI) e autora do livro “Migrações forçadas, resistências e perspectivas: América Central, México e Estados Unidos”.
“Quando existe um mercado de trabalho com facilidades para certas ocupações que a população local não quer fazer, facilita a entrada do imigrante. Agora, quando começa a haver carestia, crise econômica e esses trabalhos começam a ser ocupados também pela população local, ou seja, pelos portugueses, então sempre passa a haver um conflito. Aquele imigrante passa a ser um sujeito indesejável, porque, naquele momento de disputa no mercado de trabalho, ele está ocupando um espaço que deve ser do nacional”, diz Sarmiento sobre como o cenário político-econômico contribui para o aumento de casos de xenofobia.
Há pouco tempo no país europeu, Pimenta também enfrenta desafios para conseguir um lugar para morar. “Estou tendo dificuldades em encontrar um quarto pelo período de fevereiro a maio”. Atualmente ela reside em uma moradia estudantil, que tem prazos pré-determinados de saída.
“Para a gente saber se Portugal realmente vai deixar de ser um sonho para os brasileiros, é preciso ainda um tempo. As pessoas que imigram, investem suas economias de anos, muitas vezes vendem propriedades, elas reúnem muitos esforços, às vezes de uma família inteira. Então, a migração, grande parte das vezes, é um planejamento familiar, uma projeção de futuro”.

“Se os Estados colocam muros, se os Estados recrudescerem as suas políticas e ecoarem isso nos meios de comunicação, é óbvio que a população vai ter medo do que vem de fora, das fronteiras”, alerta.
O CICDR desenvolve ações para tentar combater os casos de preconceito no país. O órgão conta com o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025, que tem como frentes promover “mais e melhores oportunidades para todos, sem discriminações” e atuar no combate à discriminação em diferentes áreas, “como o emprego, o desporto, as plataformas digitais, o acesso a bens e serviços, bem como o código penal”.